HELEU e o papo de anjo
PAPO DE ANJO
- Quem é você?
- Ninguém.
- Mas todo mundo é alguém...
- Eu não sou ninguém.
- Você ficou incomodado com a pergunta?
- Nada me incomoda, a não ser o acômodo de algumas pessoas...
- Como assim?
- Muitos ainda questionam sobre o outro e tão pouco sabem sobre eles próprios.
- Você pegou pesado. Foi a pergunta que fiz?
- Foi a maneira como me perguntou, o tom...
- Não quis chateá-lo.
- Não me chateei, é que esse costume...
- Qual costume?
- O de questionar o outro a partir do "quem é você".
- Foi mal...
- Foi.
- Posso mandar outra?
- Manda aí!
- O que você faz?
- Ninguém faz nada.
- Todo mundo faz alguma coisa.
- Eu não sou ninguém, portanto nada faço.
- Você é alguém e certamente fez, faz e fará coisas.
- Posso mandar uma agora?
- Pode...
- Por que conversa comigo?
- Porque precisava de alguém.
- Mas... Eu já lhe disse que eu não sou ninguém!
- Tanto é alguém, que parei pra conversar.
- Então...deixei de ser ninguém?
- Você sempre foi alguém e sempre o será!
- Muito obrigado! E quem é você?
- Mandou a segunda, não é?
- Se achar que não deve responder...
- Antes de conhecer você, eu me sentia alguém que se sentia ninguém.
- Você...também...?
- Sim. Eu pensava que era o único ninguém, porém, quando lhe fiz a primeira pergunta...
- Eu lhe respondi que era ninguém.
- Foi aí que percebi que não estava sozinho, que ninguém somado a ninguém poderia resultar em alguma coisa, em alguém...
- Eu lhe respondi "ninguém", porque outros fizeram com que assim me sentisse...
- E agora?
- Agora sou alguém falando com outro alguém?
- E ninguém?
- Ninguém é um ser que não existe! rs
- Precisamos encontrar outros. Há tantos "ninguém" perdidos por aí!
- Vamos buscar esses outros, para que eles se sintam alguém, antes que seja tarde...?
- Booooooooora!!!
João D'Olyveira
"Todos são importantes na grande orquestra de Deus. Não há pequenos, todos são grandes"(I Coríntios 3:9).
HELEU e a mendicância
De grão em grão, degraus!
Em uma dessas calçadas da vida, um mendigo me estendeu uma das mãos e me pediu uma moeda. Minha vontade primeira foi dizer a ele o que sentia naquele momento frente àquela situação. Reservei-me, nada disse e me pus a caminhar.Meus passos, porém, me travaram. Corpo e mente entraram em desacordo. Decidi voltar e lhe dizer do meu sentimento:
- Você ainda é jovem, forte, inteligente. Será que, ao invés de ficar pedindo "moedinhas", o melhor não seria ter um emprego fixo, um salário?
O mendigo me olhou fixamente, balançou negativamente a cabeça coberta por longa cabeleira, passou os magros e longos dedos morcegamente pelo bigode bicolor, deu um sorriso maroto e me disse:
- Moço, você já se deu conta de que o seu salário é a soma de muitas "moedinhas", e que você nem tem tempo de contá-las, porque elas não param muito tempo nas suas mãos? Já se tocou que, quando tem esse tempo, é porque essas suas "moedinhas" já se tornaram poucas, e você totalmente dependente delas? Observe bem. Você nem bem as recebe, e elas já têm destino certo.
Fiquei pasmo com aquele discurso mendigal. Quase sem voz e movimento, disse apenas um "não".
Ele continuou:
- Comigo é diferente, só as recebo. Eu as chamo, e elas me atendem. E olha que, mesmo sem você ter me oferecido uma sequer, posso já as ter recebido pelas mãos de outros. Estou quase acreditando que você é um daqueles que juntam moedas para dar a outros. Esses outros vão somando moedas, e você executando a ação de produzi-las...para eles!
Deu uma gargalhada mortal e concluiu:
- Pode acreditar, moço, "dinheiro não cria pernas", já nasce com elas. E tem destino certo!
Ouvir aquilo que ouvi, daquele sujeito, quando, na verdade, eu havia iniciado aquele papo moralista... Não foi fácil!
Distanciei-me com um sorriso encabulado. Ele, porém, me acompanhou com um certeiro olhar de Arquimedes. A única certeza era a de que, naquele momento, não havia estado com um simples mendigo, aquele sujeito era, literalmente, um credor de reflexões financeiras.
Certamente que o ocorrido não me fez decidir pela mendicância, mas, não nego, me fez refletiralém do que desejava. Cheguei a sentir raiva dele e de mim mesmo. O estilo de vida do sujeito não me atraia, todavia foram seus dizeres econômicos que me fizeram entender a diferença entre um mendigo e um trabalhador. Diferença que não era visual, era "acional"!
Os mendigos escolhem um terreno, ocupam um espaço por um determinado tempo e atraem investidores. Os trabalhadores são selecionados para ocuparem um determinado espaço, por um tempo enganosamente indeterminado. Assinam um contrato de prestação de serviços, registram-se como "servos" daqueles que serão seus "quase donos". No final do mês, recebem moedas registradas em um contra-cheque, com direito a todos os descontos e a todas as contribuições. Tudo isso, depois que outros "servos", do Setor de RH, tenham confirmado que o "servo registrado" tenha realmente marcado presença naquela "calçada" denominada empresa.
E foram muitas outras reflexões...
Um dia, ao chegar à minha empresa (quanta ilusão dizer "minha empresa"). Um dia, dei de cara com uma placa pendurada no portão de entrada da empresa na qual sou servidor. A tal placa sempre esteve por lá, porém somente naquele dia dei conta do fato. Na placa, uma mensagem: "Sorria. Você está sendo filmado!"
Olhei fixamente a placa, li e reli os dizeres, conclui. Nosso cotidiano é puro exercício ficcional, e nosso salário é mero cachet. E ainda temos que sorrir!
Ajeitei meu crachá, cumprimentei o "servo da portaria", entrei, arregacei as mangas e dei início à primeira das oito horas que deveria cumprir. Na praça ao lado, o mendigo já contava 12 moedas: 4 de 10 centavos; 5 de 25; 2 de 50 e 1 de 1 real. Para cada um dos passantes, um tom de voz, uma expressão...
João D'Olyveira
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