Mostrando postagens com marcador Trabalhador. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Trabalhador. Mostrar todas as postagens

HELEU e a mendicância


De grão em grão, degraus!


Em uma dessas calçadas da vida, um mendigo me estendeu uma das mãos e me pediu uma moeda. Minha vontade primeira foi dizer a ele o que sentia naquele momento frente àquela situação. Reservei-me, nada disse e me pus a caminhar.Meus passos, porém, me travaram. Corpo e mente entraram em desacordo. Decidi voltar e lhe dizer do meu sentimento: 

- Você ainda é jovem, forte, inteligente. Será que, ao invés de ficar pedindo "moedinhas", o melhor não seria ter um emprego fixo, um salário?

O mendigo me olhou fixamente, balançou negativamente a cabeça coberta por longa cabeleira, passou os magros e longos dedos morcegamente pelo bigode bicolor, deu um sorriso maroto e me disse:

- Moço, você já se deu conta de que o seu salário é a soma de muitas "moedinhas", e que você nem tem tempo de contá-las, porque elas não param muito tempo nas suas mãos? Já se tocou que, quando tem esse tempo, é porque essas suas "moedinhas" já se tornaram poucas, e você totalmente dependente delas?  Observe bem. Você nem bem as recebe, e elas já têm destino certo.

Fiquei pasmo com aquele discurso mendigal. Quase sem voz e movimento, disse apenas um "não".

Ele continuou:

-  Comigo é diferente, só as recebo. Eu as chamo, e elas me atendem. E olha que, mesmo sem você ter me oferecido uma sequer, posso já as ter recebido pelas mãos de outros. Estou quase acreditando que você é um daqueles que juntam moedas para dar a outros. Esses outros vão somando moedas, e você executando a ação de produzi-las...para eles!

Deu uma gargalhada mortal e concluiu:

-  Pode acreditar, moço, "dinheiro não cria pernas", já nasce com elas. E tem destino certo! 

Ouvir aquilo que ouvi, daquele sujeito, quando, na verdade, eu havia iniciado aquele papo moralista... Não foi fácil!

Distanciei-me com um sorriso encabulado. Ele, porém, me acompanhou com um certeiro olhar de Arquimedes. A única certeza era a de que, naquele momento, não havia estado com um simples mendigo, aquele sujeito era, literalmente,  um credor de reflexões financeiras.

Certamente que o ocorrido não me fez decidir pela mendicância, mas, não nego, me fez refletiralém do que desejava. Cheguei a sentir raiva dele e de mim mesmo. O estilo de vida do sujeito não me atraia, todavia foram seus dizeres econômicos que me fizeram entender a diferença entre um mendigo e um trabalhador. Diferença que não era visual, era "acional"!

Os mendigos escolhem um terreno, ocupam um espaço por um determinado tempo e atraem investidores. Os trabalhadores são selecionados para ocuparem um determinado espaço, por um tempo enganosamente indeterminado. Assinam um contrato de prestação de serviços, registram-se como "servos" daqueles que serão seus "quase donos". No final do mês,  recebem moedas registradas em um contra-cheque, com direito a todos os descontos e a todas as contribuições. Tudo isso,  depois que outros "servos", do Setor de RH, tenham confirmado que o "servo registrado" tenha realmente marcado presença naquela "calçada" denominada empresa.

E foram muitas outras reflexões...

Um dia, ao chegar à minha empresa (quanta ilusão dizer "minha empresa"). Um dia, dei de cara com uma placa pendurada no portão de entrada da empresa na qual sou servidor. A tal placa sempre esteve por lá, porém somente naquele dia dei conta do fato. Na placa, uma mensagem: "Sorria. Você está sendo filmado!"

Olhei fixamente a placa, li e reli os dizeres, conclui. Nosso cotidiano é puro exercício ficcional, e nosso salário é mero cachet. E ainda temos que sorrir!

Ajeitei meu crachá, cumprimentei o "servo da portaria", entrei, arregacei as mangas e dei início à primeira das oito horas que deveria cumprir. Na praça ao lado, o mendigo já contava 12 moedas: 4 de 10 centavos; 5 de 25; 2 de 50 e 1 de 1 real. Para cada um dos passantes, um tom de voz, uma expressão...

João D'Olyveira

DESTAQUES DO MÊS