HELEU e o coração monitorado



I

Nesta manhã tomei um banho demorado. Por longos minutos, até achei que estava sendo meu último banho terreno. Lembrei-me da expressão "vira essa boca pra lá" e segui o caminho das águas. Ao cair da água morna sobre meu corpo, pensava distantemente da realidade em que hoje vivo. Nada do meu presente se fez presente naquele presente "in box". Sem um esforço qualquer, busquei na minha infância os meus mais íntimos momentos de felicidade. O real era que, sob aquele pensar, não rolou uma simples busca, mas um significativo processo de recuperação alimentar "almística". É isto mesmo:"recuperação alimentar almística". Afinal, estarei sempre seguro de que as coisas boas da minha infância me alimentam nessas horas. Elas sempre me foram e serão meus bálsamos. Bem, vamos adiante! Enquanto me banhava e deixava jorrar meu pensamento pueril, concomitantemente, devolvia-me o direito de resgatar frações perdidas da minha felicidade. 

De repente, duas mãos molhadas esfregaram vagarosamente meu rosto, levantando minha cabeleira para trás, a retirar o excesso de água que corria sobre finos fios de cabelo, acortinando sobre meu rosto. Era eu próprio interrompendo meu pensamento, agindo como uma manivela a me devolver à realidade daquela manhã sem sol. Ocorreu um corte preciso entre minha "supra" e minha realidade. À frente dos meus olhos, um registro a fechar. Era preciso dar uma pausa à água e um momento para um "shampoo" e um hidratante cumprirem suas funções. Depois, um "sabonetear" antibacteriano por completo. Tudo deveria ser muito bem lavado, sem exceções. Já havia sido informado de que seriam 24 horas sem banho, para que eu pudesse me submeter aos caprichos de um tal de Holter. Um "sujeitinho mecânico" que, além do mais, exigia que eu, após aquele banho, não fizesse uso de cremes ou loções na região do tórax. Nesta melancólica manhã, minhas ações foram as seguintes: banhei-me, refleti em pretérito quase-perfeito (porque ninguém é perfeito, nem em pensamento rs), aprontei-me minuciosamente para um necessário monitoramento cardíaco.

II

Desde às 9h48min45seg deste dia 29 de fevereiro de 2016 estou sendo monitorado por um dispositivo portátil que pesa cerca de 100 gramas. Ele está acoplado na minha cintura. Devo executar todas as minhas ações regulares para que o referido monitoramento faça sentido. Em silêncio, ele registra meus batimentos cardíacos, detectando alterações ao longo de um período que será de 24 horas. Já me revelaram seu objetivo principal: avaliar as variações do ritmo e da frequência cardíaca da minha máquina chamada coração. Hoje ele dormirá comigo. Já sei de suas "boas intenções". Disse-me um especialista nesses monitores, que ele está comigo para detectar possíveis arritmias ou disritmias. Não bastasse, ainda deseja identificar, em meu coração, umas tais e possíveis isquemias silenciosas. "Quem me conhece, que me compre". Sabem disto: sempre procuro agir em silêncio frente às minhas ações. Todavia, não nego que hoje me preocupam essas tais "isquemias", especificamente por serem silenciosas. Estou na torcida para que o silêncio realmente valha ouro.

III

Estou também pensando seriamente em ir para a cama mais cedo que o de costume. Não sei se é uma boa eu realizar todas as ações como se não percebesse a presença desse tal Holter me espionando. Embora um friozinho ocupe meu dia, decidi por ficar a peito nu. Quero mesmo é deixar bem à vista os eletrodos de contado, que foram aderidos ao meu tórax e conectados a um gravador por meio de cabos. Como os fenômenos naturais estão meio malucos ultimamente, chuva e sol sem controle, torço muito para que não caíam raios por perto. Olho-me o tempo todo como um chamariz ideal para essas quedas. 

IV

A todo momento do dia e até neste momento, o ordem é que eu devo acionar um botão de eventos sempre que apresentar algum sintoma anormal, como "coração acelerado", "tontura", "cansaço". Até o momento, tudo bem! Só o meu pensamento continua voando por aí, sempre para eventos ocorridos em minha infância. De resto, nada que se possa registrar como "anormal". Estou também a fazer uma "viagem de bordo", isto é, um registro de todas as atividades realizadas durante o período de monotorização. Estou anotando todas elas minuciosamente. Os porquês serão me revelados no consultório do meu cardiologista.

V

Exame feito. Monitoramento realizado. Em uma semana saberei o resultado desse processo. Só tenho um "medinho" rondando minha mente, e juro que ele não é nada infantil: "Tomara que esse tal do Holter não revele meu sentimento mais profundo". Até porque ele deverá, em momento oportuno, ser revelado a quem não se chama Holter. E meu desejo é que seja revelado ainda neste plano. Caso contrário, estará bem guardado em meu "coração mental". Agora, cá entre nós, em qualquer situação, como é "chato" ser monitorado!


João D'Olyveira



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Agradecimentos Heleunísticos
João D'Olyveira

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